“Não, não, você errou. Era para ter feito desta forma.”
Logo no início da aula, o professor Juca coloca sob sua mesa os testes corrigidos e arrasta um olhar caído ao longo da sala. Ao se sentar, estende o braço e pede a Carlos para colocar a resposta do primeiro exercício na lousa. Carlos responde ao comando transpondo sua resposta do caderno na lousa, em silêncio. O professor acompanha inclinadamente o gesto e pausa por uns minutos. Carlos decide ficar à espera. Por fim, Juca aponta para o registro e diz: “Não, não, Carlos, não foi desse jeito que aprendemos. Você deveria ter seguido a lógica que adotamos na primeira aula. Volte para seu lugar.”
A fala do Professor Juca pode variar de mais rude até mais branda, mas em algum momento de nossas vidas possivelmente já fomos “podados” pela noção do “certo” que não estávamos totalmente familiarizados. As noções do certo e errado são premissas morais e, ao longo de nossas vidas, balizamos nossas ações de acordo com “aquilo que é certo”. A escola é um dos lugares onde iniciamos essa adequação e a aula do Professor Juca é um dos exemplos simbólicos disso. Tanto em questões mais simples ou complexas, certamente já estivemos no lugar de Carlos.
Mas Carlos, de fato, cometeu um erro? Em sua definição mais ampla, o erro é a resposta em desacordo com um critério. Geralmente o analisamos sob uma ótica dual, do certo e “não-certo”, onde a resposta errada é aquela que, mediante a algum critério, não atendeu a este último. Dessa forma, o erro é concebido a partir de um lugar de referência, uma realidade observada com critérios próprios.
No exemplo acima, o universo (realidade observada) é a sala de aula do professor Juca e seus estudantes, no qual há o Carlos, cuja tarefa delegada foi de colocar a resposta de uma questão na lousa. Especialmente para ele, os critérios eram dois: obedecer o comando do professor e responder a questão de acordo com a metodologia ensinada na primeira aula. Mas não necessariamente eram critérios óbvios, até porque ele poderia até se lembrar da metodologia dada, mas não poderia presumir que a resposta deveria ser daquela forma até que o professor anunciasse. E daí nasceu o erro. E isso não significa que Carlos não sabia chegar na resposta, e sim que sua resposta “apenas” não atendeu ao critério de seu professor dentro do universo escola-sala-de-aula-professor-Juca.
Esse desajuste ao critério “não tão óbvio” é um espaço perigoso, uma vez que associamos quase que fatalmente o erro a uma ação que merece punição, coibição, ou restrição, quando que, na verdade, os critérios daquela realidade observada é que não estão expostos ou acordados, o que torna o “desajuste” um caminho até que natural de ser seguido.
A classificação generalista do erro enquanto o “não-certo” por vezes fundamenta-se numa concepção de que saber e não saber são coisas excludentes, onde enfatiza-se um em prol da desnaturalização do outro. É possível que Carlos saia da interação acreditando que sua inteligência para a matéria é limitada. E quando isso acontece, estamos podando mentes férteis a um determinado universo, quase que dizendo que ele serve como regra absoluta, quando que, de fato, a nossa vida é preenchida por diferentes universos e critérios relativos. O desafio é fazer a leitura destes e ponderar sobre até quando devemos nos ajustar a eles, como quando Carlos entende que o método utilizado pelo Professor Juca é uma das formas de chegar no resultado, mas não se inibe em utilizar outros métodos e não encara seu erro como algo que dita sobre sua capacidade de aprender aquela temática.
Assim, por mais que o erro de Carlos signifique que a nota final do teste não será alta, por exemplo, isso não leva a crença de que a habilidade cognitiva dele limita-se àquele universo escola-prova-critério-professor(a). O verdadeiro ensinar mora no reconhecimento e na valorização da aprendizagem enquanto múltiplos universos e, com devidos tempo e dedicação, com o entendimento da própria pessoa sobre sua real capacidade de interpretar critérios das provas como também de outros lugares em que um determinado conhecimento se aplica. Carlos não atingiu um dos critérios do Professor Juca, mas não falhou como aprendiz.
O erro é, sobretudo, um processo mental essencial para a fundação do conhecimento. Ele é um caminho natural de conflito entre diferentes universos e critérios, e uma forma que nosso cérebro encontra de se “ajustar” aos critérios que de um aprendizado novo. Se pensarmos enquanto caminhos mentais, errar é como cavar novos, pois o embate de critérios é uma das formas que o cérebro encontra de mapear saberes.
Mas embora pensadores educacionais, como Freire (1999) e Piaget (1958), tenham notavelmente promovido o erro enquanto sustento da aprendizagem, ainda permanece a ideia de que ele deve ser evitado a todo custo e que o êxito está ligado à capacidade de livrar-se dele. Isso se deve principalmente porque depositamos uma carga emocional que acaba induzindo a ideia de que o erro fere a moral de algo ou alguém. No caso do professor Juca, ele pode vir a se sentir fracassado pois seu estudante errou a resposta de uma pergunta que, sob seu critério, era tida como “básica”. Quando o erro do outro nos atinge ou flagela, depositamos um manto emocional coibitivo ou de culpa que ele não tem a responsabilidade de carregar. E se pudéssemos tirá-lo, o veríamos enquanto uma resposta relativa, ou seja, algo que não tem carga absoluta nenhuma e, portanto, não dita sobre nossas reais capacidades. Quantos professores(as) não se sentiram incapazes por associarem diretamente os erros dos(as) estudantes enquanto sinais de fracasso profissional?
Contudo, errar dentro de um universo não nos torna absolutamente incapazes de continuar lidando com ele. Se o pensarmos enquanto resultado de um conflito de critérios relativos, muito possivelmente nosso olhar e forma de abordá-lo dentro de nossas vidas poderiam ser muito mais fluidos e gentis. O Carlos e o Professor Juca, inclusive, poderiam nutrir uma relação de aprendizado completamente diferente da apresentada, muito mais aberta e não-comparativa.
A abordagem do Professor neste caso ainda tem muito a nos provocar enquanto sujeitos e professores(as). Imagine se, ao nos depararmos com uma resposta como a de Carlos, refletíssemos primeiramente quais eram os critérios e quão nítidos eles estavam. O que mudaria nesse cenário? Será que o ensinar não pode ser concebido, também, a partir do conflito natural entre os mais diferentes critérios e universos?
“Para além das ideias de certo/errado existe um campo, me encontrarei com você lá.” - Rumi, Poeta Persa (1207 - 1273).
Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Steuer, G., Rosentritt-Brunn, G., & Dresel, M. (2013). Dealing with errors in mathematics classrooms: Structure and relevance of perceived error climate. Contemporary Educational Psychology, 38(3), 196-210.
Moser, J. S., Schroder, H. S., Heeter, C., Moran, T. P., & Lee, Y. H. (2011). Mind Your Errors Evidence for a Neural Mechanism Linking Growth Mind-Set to Adaptive Posterror Adjustments. Psychological Science, 0956797611419520.
NOGARO, Arnaldo; GRANELLA, Eliane, E. O erro no processo de ensino e aprendizagem. Revista de Ciências Humanas. Criciúma, 25 p, 2004.
PIAGET, Jean. A Psicologia da Inteligência. Trad. Egléa de Alencar. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1958. 239p.
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