“Até hoje, eu só gostei de 2 professores na minha vida, você é a terceira!”. Essa foi a frase que ouvi de uma aluna do 7° ano em uma de nossas primeiras aulas e que me fez refletir sobre o que afeta os alunos, ou seja, sobre a importância da afetividade no contexto escolar. Adoraria dizer que ela me falou isso porque tinha acabado de compreender algum conceito mais complexo da Matemática, mas na verdade o que aconteceu foi algo bem diferente disso.
Nesse dia havia acabado a água na escola e uma aluna, com toda razão, estava muito brava por causa disso. Depois de um tempo, chegaram alguns galões para os estudantes poderem tomar água, mas quando essa aluna foi lá, já tinha acabado novamente e ela voltou ainda mais brava e indignada. Então, eu simplesmente perguntei se ela queria beber a água que eu tinha na minha garrafa (obviamente isso foi antes da pandemia) e ela aceitou, finalmente matando sua sede. E foi aí que a outra aluna, vendo essa situação, falou aquela frase para mim. O engraçado é que não foi nem a estudante que bebeu minha água que me disse isso, mas a que apenas viu o que aconteceu. E isso me fez pensar no quanto eles estão atentos ao que ocorre na sala de aula e no quanto ações que parecem simples para o professor, podem ter um impacto muito grande nos alunos, de maneiras que nem podemos imaginar. Acredito que o que a marcou tanto foi perceber, através de um simples gesto, que eu me importava com os alunos, com os seus sentimentos e os acolhia, agindo para que ficassem bem, ou seja, havia afetividade na sala de aula. Vale destacar que não é papel do professor resolver esse tipo de situação, que infelizmente é comum nas escolas públicas, mas fiz o que estava ao meu alcance naquele momento para amenizar o caso.
Certa vez, passei para os alunos um formulário de feedback sobre as nossas aulas e uma das perguntas era “o que mais te surpreendeu na aula até agora?”. A resposta que me chamou atenção foi essa: “como os alunos se comunicam bem com a professora nós rimos, tiramos dúvidas”. Ao mesmo tempo em que fiquei feliz com esse retorno, pensei que isso não deveria causar surpresa, mas sim ser a norma, pois para que os alunos aprendam melhor, precisamos ter um ambiente em que se sintam seguros e valorizados. As pesquisas já mostram que a emoção tem um papel importante no desenvolvimento cerebral para a aprendizagem. Segundo o livro How People Learn II: Learners, Contexts, and Cultures (2018), no passado era comum assumir que a emoção atrapalhava o pensamento crítico e que conhecimento e emoção eram separados. No entanto, hoje em dia as pesquisas deixam claro que as conexões cerebrais relacionadas à emoção, aprendizagem e memória estão completamente entrelaçadas. Como bem disse Paulo Freire em seu livro Professora sim, tia não - Cartas a quem ousa ensinar (1993): “É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional”. Esse pensamento se torna ainda mais importante nesse contexto de pandemia que estamos vivendo.
Portanto, a afetividade não deve ser vista como um complemento ou algo separado da aprendizagem, mas sim como a parte central, a base a partir da qual se possibilita uma construção sólida de conhecimentos e valores. Outra grande referência para mim na educação, o professor José Moran, ao explicar sobre metodologias ativas em uma aula, disse algo que também vai muito ao encontro disso: “a metodologia ativa está dentro de um processo que é maior, envolvendo acolher o aluno, entendê-lo e valorizá-lo. Não adianta pensar só em estratégias, precisamos trabalhar também para que o aluno sinta que nós damos valor a ele”. Ou seja, por mais que as metodologias ativas tenham modelos e estratégias bem definidos, a parte central dela, que foi sabiamente destacada pelo Moran, novamente é a afetividade.
Vale destacar ainda que, segundo o livro How People Learn II: Learners, Contexts, and Cultures (2018), certas emoções como ansiedade, podem prejudicar a aprendizagem, pois ao causar preocupação, consomem recursos cognitivos e ativam regiões do cérebro associadas ao medo e fuga, em vez do pensamento acadêmico. Lembro que quando trabalhava com aulas particulares de reforço, muitos alunos chegavam com medo para a aula, deixando claro para mim o quanto as dinâmicas de poder existentes entre aluno e professor pode ser estruturalmente opressivas, por mais que se tenham boas intenções, principalmente nos casos de alunos que não vão bem. Portanto, nesses casos começava a aula tentando deixar explícito que não estava lá para julgá-los ou rotulá-los, mas sim para ajudá-los. E assim, com afetividade, a aula ia se desenvolvendo e os alunos percebiam que não havia motivo para medo ou ansiedade e, dessa forma, conseguiam aprender melhor.
E reforço que para a afetividade estar presente no contexto escolar, não precisa ser algo grandioso com um planejamento trabalhoso. Uma vez uma aluna chegou na sala de aula e me disse: “professora, eu assisti um filme que tinha uma atriz que parecia muito com você!”. Logo depois veio a pandemia e aproveitei o tempo em casa para assistir ao tal filme. Não achei a atriz tão parecida comigo, mas no começo de uma das aulas online falei para a aluna que tinha assistido ao filme e foi muito interessante perceber o impacto que isso teve. Normalmente, ela não interagia nas aulas online e eu até me perguntava se estava realmente presente, mas nesse dia especificamente ela ficou muito engajada, respondendo a todas as minhas perguntas. Novamente a afetividade teve um impacto significativo na aluna, pois ao ver o filme que ela me falou, estava dizendo de uma forma sutil “eu te vejo e você é importante” e isso criou um ambiente no qual ela se sentia segura e motivada a participar.
É interessante perceber o quanto a afetividade naturalmente acaba sendo recíproca, ajudando não só aos alunos, mas à professora também. Ao terminar minhas aulas online sempre agradecia aos alunos pela presença, e depois de um tempo, alguns começaram a me agradecer pela aula e a falar que tinham gostado e aprendido muito. Percebi que isso fazia toda a diferença para mim, mantendo-me motivada a continuar dando o meu melhor. Novamente, de uma maneira sutil, eles estavam me dizendo “seu trabalho é importante e seu esforço importa”, que eram questionamentos que constantemente me fazia, principalmente nesta época de pandemia e aulas online, e esse simples gesto deles era suficiente para acalmar meu coração.
A afetividade é tão poderosa que, não só ajuda no desenvolvimento cerebral e a criar vínculos mais fortes, promovendo um ambiente mais propício para a aprendizagem, como também transmite para os alunos exemplos e valores importantes, que podem ser levados para a vida toda. E eu sou um grande exemplo disso, não como professora, mas como aluna. Tive um professor muito especial de Literatura, o Miro, durante meu Ensino Médio. Naquele tempo, estava escrevendo um poema e ele me ajudou nesse processo, com muita técnica, mas também sempre com muita afetividade. Ao final, ele me presenteou com dois livros, que na época nem dei muita importância e acabei esquecendo. Mas qual não foi a minha emoção, ao reencontrar esses livros muitos anos depois, quando entrei para o Ensina Brasil e vi que eram voltados para a prática docente: "Relações do ensinar" e "Crônicas ao Educador". Portanto, não pude deixar de me questionar se foi uma simples coincidência ou se ele já tinha uma intuição de que tinha potencial para me tornar uma educadora. Mas enfim, meu ponto é que em seu texto "Quem se lembra?" presente no "Relações do ensinar", ele escreveu um ensinamento que me emocionou muito e tem tudo a ver com o que estamos discutindo: "Sonho com um dia em que, se algum aluno meu vier a se lembrar de mim, que seja menos pelos ensinamentos de Língua Portuguesa do que pela compreensão, pelo respeito, pela tolerância, pela clara manifestação, enfim, desses princípios que vão sendo esquecidos muitas vezes, para darem lugar a frias definições de como agir e como ensinar". E é com muita alegria que afirmo que esse tão sonhado dia chegou, pois ao me lembrar dele imediatamente me vem a questão da afetividade, sendo ele um grande referencial para minha prática docente, mais humana e acolhedora. E espero que meus alunos também se lembrem de mim pela afetividade e por esses valores.
Entretanto, por mais que tudo isso seja muito bonito, não quero dar a entender que necessariamente é fácil, ainda mais considerando a rotina atribulada dos professores e muitas vezes a falta de formação inicial ou continuada nesse assunto. Lembro que uma vez cheguei um pouco estressada para a aula e já fui escrevendo o conteúdo no quadro, e aí uma aluna me disse: “nossa, professora, você já está passando matéria e nem cumprimentou a gente, nem perguntou como estamos!”. Foi aí que um sinal vermelho se acendeu e eu parei imediatamente o que estava fazendo, porque percebi que a aluna tinha total razão. Então recomecei, agora com mais afetividade. Também é comum termos alguns alunos com comportamento mais difícil de lidar e, nesses casos, realmente é mais complicado termos tanta afetividade. Mas algo que me ajuda é entender que esses alunos provavelmente são os que têm histórias de vida e contextos mais difíceis e justamente são os que mais precisam de afeto. Ter isso em mente me ajuda a ter mais empatia e paciência.
Como disse, ter a afetividade constantemente presente no contexto escolar não é simples ou fácil, mas precisa ser algo ao qual estejamos atentos e melhorando sempre que possível, pois como bem disse Carl Buehner: “As pessoas esquecerão o que você disse, as pessoas esquecerão o que você fez. Mas elas nunca esquecerão como você as fez sentir.”.
PS: Já que estamos falando de afetividade, gostaria de agradecer às pessoas que me ajudaram com o texto - minha amiga Bianca e minha mentora Andréa, além de um agradecimento especial ao professor Miro e a todos os meus professores e também a toda a equipe do Blog Rede Ensina e principalmente aos meus alunos, que me ensinam tanto.
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