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Fernanda Vilela Gabriel

Diário da transição: tudo saindo como não planejado.

Os textos abaixo relatam situações reais que aconteceram durante a minha transição para alumni do Ensina Brasil – processo que ainda não está concluído, mas certamente é o encerramento de ciclo mais intenso que já vivi.


Nos últimos meses, conversei com muitos colegas (também ensinas em processo de conclusão do programa) que relataram “sintomas” parecidos com os meus: o nervosismo, a ansiedade, o medo do futuro e, principalmente, o difícil momento de se despedir dos estudantes, da escola, e da comunidade que nos acolheu durante dois anos de nossas vidas.


Para além da positividade irreal do “vai dar tudo certo, você vai ver”, este relato em forma de diário tem como objetivo enfatizar que não estamos sozinhos nessa jornada e é importante compreender, extrapolando nossas bolhas, a potência da rede em que escolhemos atuar – agora, entendendo o que está por vir após os dois anos como ensina.


Terça-feira, 26 de janeiro


Resolvi escrever um diário. Essa noite quase não dormi. Fiquei sabendo que o ano letivo no polo em que atuo, São Luís (MA), vai começar em março. Não estou preparada para isso. Acho dois anos pouco tempo. A pandemia atrapalhou todos os meus planos, tudo o que eu havia sonhado e planejado simplesmente desmoronou. Eu preciso de mais tempo aqui para conseguir fazer as coisas que quero fazer. Será que vou conseguir?


A escrita é a única saída que encontro para colocar pra fora tudo o que estou sentindo. Eu espero sobreviver a esse ano.


Quinta-feira, 25 de fevereiro


Hoje foi o meu primeiro encontro de tutoria, um dos elementos formativos do Ensina. Reunimos todos os colegas ensinas da escola e conversamos sobre a comunidade escolar. Estou me sentindo insegura, mas o ano letivo já está quase para começar. De novo o ensino remoto, ainda sem perspectiva de retorno. Ouvi no jornal que vão começar a vacinar os professores no mês que vem e eu não vejo a hora de chegar a minha vez.


Conversar sobre a escola me fez muito bem. Lembrar daquele espaço, das pessoas e de tudo o que é possível realizar a partir da potência daquela comunidade me traz coragem para continuar, mesmo com tantas incertezas.


Segunda-feira, 1º de março


Primeiro dia de aula e eu aqui gravando o vídeo de apresentação para as minhas turmas. Estou com pouca paciência, pois já tentei mais de 30 vezes e ainda não está bom. Toda hora travo em alguma palavra, algo dá errado e não consigo fazer esse vídeo de jeito nenhum.


Eu não sei ser uma professora youtuber e é muito difícil dizer quem eu sou em poucos segundos de vídeo, à distância. O que será que meus alunos vão pensar de mim? Eu não vou aguentar mais um ano de ensino remoto, definitivamente eu não aguento mais isso. Preciso dos meninos perto, e eles também precisam de mim e da escola. Vem vacina, pelo amor de Deus!


Baixei um programa de edição de vídeo, porque além de youtuber eu também sou a minha própria editora. Apesar das dificuldades, estou animada para aprender a mexer nesse programa. E é bom que eu aprenda, porque acabei me comprometendo a editar o vídeo dos outros professores também.


Hoje é dia de dormir tarde.


Segunda-feira, 8 de março


Os colegas ensinas tiveram a ideia de organizar um aulão sobre bem-estar e organização dos estudos. Cada um de nós ficou responsável por apresentar uma parte e montamos uns slides bem bonitos. Apresentamos hoje para as turmas do matutino e do vespertino. Tudo pelo Google Meet, tinha mais de 100 alunos acompanhando.


Não consegui ver o nome e nem o rosto de todos – até porque a maioria deles não abre a câmera e entra na chamada com um apelido ou nome diferente do nome real.


Alguns alunos interromperam a explicação dos professores para fazer brincadeiras fora de hora. Outros ficaram com conversas paralelas pelo chat da chamada. Tivemos que fazer combinados com eles e, ainda assim, não resolveu muito. Mas notei que a maioria estava entendendo que aquele assunto era importante para eles.


Esse ano letivo promete.


Quarta-feira, 5 de maio


A gestora da escola convocou um Conselho de Classe presencial para marcar o encerramento do primeiro período (aqui no Maranhão chamam os bimestres de períodos). Alguns professores ficaram inseguros, pois poucos de nós estão vacinados, mas fomos mesmo assim.


Há muitos casos de estudantes que não estão acompanhando as atividades e tentei emplacar uma planilha de uso coletivo para ajudar a coordenação a visualizar mais rapidamente os alunos evadidos. Não deu certo. Ninguém se interessou pela planilha. Então, seguimos fazendo como antes, mantendo o controle numa tabela feita à mão pela supervisora.


Às vezes fico chateada ao notar como nossos processos na escola poderiam ser mais ágeis se utilizássemos outras ferramentas. Mandei mensagem para a minha tutora, desabafando sobre a minha frustração pós Conselho de Classe e ela me trouxe paz ao dizer que estamos fazendo o melhor para a escola, dentro das possibilidades que temos.


Ao todo, 15 alunos meus não estão participando das aulas online e nem entregando as atividades que estou passando. São 15 alunos que não sei se estão bem, se precisaram entrar no mercado de trabalho para ajudar nas contas de casa, se perderam familiares para a Covid. Eu simplesmente não sei o que está acontecendo com eles.


Já passa da meia noite e minha cabeça não para de pensar.


Segunda-feira, 10 de maio


Viva o SUS! Viva a ciência! Hoje finalmente tomei a primeira dose da vacina! Foi o dia mais feliz do ano! Fiz chamada de vídeo com a minha mãe, mostrei a foto para o meu pai, postei no Instagram e anunciei para Deus e o mundo que estou parcialmente imunizada. Tanto sofrimento, tanta ansiedade, tudo o que vivi no último um ano e meio foi abafado por uma nuvem de esperança que tomou conta do meu corpo. A febre que sinto agora é a febre mais feliz da minha vida!


Não consigo escrever muito, pois meu braço dói.


Quinta-feira, 8 de julho


Essa quinta-feira foi um dos momentos mais importantes do meu último ano como ensina. Finalmente tive o meu primeiro encontro de mentoria, um elemento formativo dedicado aos ensinas que estão no final do programa. Nesses encontros, conversamos com mentores indicados pelo Ensina, que trazem novos olhares sobre os desafios da educação no Brasil. Estava aguardando este dia com muita expectativa, pois quero absorver tudo o que puder desse processo.


Tinha uma curiosidade imensa de saber quem era a minha mentora. Preenchi aquele formulário de interesse com muitas dúvidas. Não sei se quero seguir na gestão pública ou se quero o terceiro setor. Eu amo dar aulas, mas será que vou continuar na docência? São muitas dúvidas para poucas respostas.


Indiquei que queria alguém da mesma área de formação que a minha, com foco em direitos humanos. Minha mentora é gerente de projetos de um instituto de São Paulo e eu vesti minha melhor roupa (da cintura para cima) para o nosso primeiro encontro. Estava muito animada.


Em nossa primeira conversa, parecia que já nos conhecíamos há muito tempo. Conversamos sobre muitas coisas, ela se apresentou, eu me apresentei. Passamos da 1 hora que estava programada.


Encerrei a chamada entusiasmada com essa oportunidade.


Terça-feira, 27 de julho


A segunda dose da vacina chegooooou! Agora sim, 100% imunizada! A grande surpresa do final das férias escolares de julho é o anúncio do tão esperado retorno às aulas presenciais: segunda-feira, 2 de agosto.


Esperei tanto por esse momento e não sei mais se estou tão preparada para isso. Já me acostumei à rotina de trabalho em casa e comprei até uma cadeira de escritório para não ter mais dor nas costas. Voltei a me sentir ansiosa.


Não sei se quero voltar para a escola.


Quarta-feira, 18 de agosto


Faz tempo que não escrevo, definitivamente eu não tenho tempo e nem paciência para manter um diário.


Estou passando por aqui hoje para contar que eu me inscrevi em um processo seletivo super importante. Tenho medo de não ser aprovada, pois estou depositando praticamente todas as minhas fichas nisso. Nessa reta final de programa, as maiores inseguranças se dão justamente pelo cenário de incertezas que chegam junto com a transição que viveremos em alguns meses. Estou muito confiante de que essa fase de mudanças acontecerá da melhor forma possível.


As aulas começaram com tudo, mas, apesar do cansaço, foi uma experiência mágica voltar para a sala de aula. Finalmente conheci meus “webalunos” e conseguimos fazer as dinâmicas de acolhimento que tanto planejei.


Só de pensar em sair da escola, meu coração aperta.


Segunda-feira, 6 de setembro


Aproveitando o feriado prolongado para escrever, pois está difícil encontrar algum tempo para manter isso aqui atualizado. Hoje é dia 6 de setembro e, um mês após o retorno presencial, ainda tenho alunos que não compareceram um dia sequer nas aulas.


Estou preocupada com eles. Com a evasão. Com o que esses estudantes andam fazendo fora da escola. Na semana passada, estava conversando com uma professora antiga na escola e ela disse que os alunos não estão frequentando as aulas porque precisam trabalhar, ou em casa com afazeres domésticos, ou na informalidade para ajudar as famílias.


A maioria desses meninos está no 9º ano, ou seja, nem completaram o Ensino Fundamental. São jovens de 14, 15 anos que precisam da escola e estão tendo esse direito negado pela própria sociedade.


Eu me sinto falhando e não sei como contribuir.


Quinta-feira, 11 de novembro


Falei para os meus alunos que provavelmente aquelas seriam nossas últimas aulas juntos. Não consegui completar a frase e comecei a chorar. Pela primeira vez, chorei em uma sala de aula. Não imaginei que seria tomada por uma emoção e por uma tristeza tão grande ao fazer esse anúncio.


Resolvi contar com antecedência, porque não queria que eles ficassem sabendo às vésperas. E, ao que tudo indica, eu realmente não estarei mais na escola no ano que vem. Sempre tive uma relação transparente com meus alunos, seja qual fosse o assunto, e prometi para mim mesma que dessa vez não seria diferente. Só não esperava chorar no meio da minha fala.


Para a minha surpresa, meus alunos me aplaudiram após o anúncio, o que me levou a chorar o dobro do que eu já estava chorando. É impressionante como, em menos de 6 meses de aulas presenciais, conseguimos desenvolver um afeto tão grande uns pelos outros. Eu amo meus alunos e amo tudo o que produzimos em nossas aulas.


Há tão pouco tempo do final da experiência como ensina, olho para trás e percebo que nada saiu como o planejado. Queria ter feito mais projetos, queria mais aulas presenciais, queria ter me aproximado mais de alguns professores.


A pandemia, meu estado emocional e outros fatores que ainda nem consegui visualizar, não me permitiram realizar algumas coisas que havia pensado, mas, em meio a tantas reviravoltas, também carrego comigo muitas vitórias.


Como quando envolvi a Mayanna, a Fran e a Italy, minhas alunas do oitavo ano, no projeto de reforma da biblioteca da escola, e elas se mostraram excelentes lideranças nesse processo, motivando outros alunos da turma sobre a importância desse espaço para a comunidade escolar.


Ou quando o Thiago, meu aluno do nono ano, se sentiu confiante o suficiente para escrever a sua primeira produção textual. Ou ainda quando pude oferecer amparo à Ana Beatriz, também do nono ano, quando ela perdeu a mãe.


O maior aprendizado que levo dessa experiência é a importância do afeto em tudo o que faço. Mesmo que a realidade seja tão dura e difícil, o afeto é a ferramenta mais importante que temos conosco, seja na escola ou em qualquer projeto que façamos parte.


Tenho medo do futuro, assim como tive medo da mudança no início de 2020. Mas tenho coragem para seguir e confiança para continuar trabalhando com a visão de que um dia todas as crianças terão acesso a uma educação de qualidade.


E com afeto.


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